a sua permanência, a sua actualidade,
aquela verdade que nos garantes quando nos fazes intuir
que tudo nele faz sentido para nós,
que precisamos dele como pão para a boca,
porque nos fazem falta os segredos para sermos mais felizes,
mais livres e mais generosos.
Tocar-te, Jesus, e em ti tocar o essencial do Mistério da Vida,
o lado de dentro da existência, e dar de caras com Deus
como emergência familiar que cria e gera continuamente
Vida à Sua imagem e semelhança…
Tocar-te, Jesus, e em ti tocar o destino de cada Ser Humano
como Salvação e Pertença Filial a um Deus que “não sabe” que o é
porque está eternamente ocupado em ser Pai…
Ser tocado por ti, Jesus, e sentir a Força que vem de ti,
a energia, a Vitalidade do Espírito
que estanca as nossas hemorragias antigas
e é capaz de sarar as nossas feridas mais profundas…
Ser tocado por ti, Jesus, e em ti ser mergulhado no dinamismo pascal da Vida,
no Baptismo do Espírito que vence as forças do Homem Velho
e gera continuamente o Homem Novo,
Homem Filho, Homem Corpo, Homem Divinizado…
Ser tocado por ti, Jesus, e perceber o que significa chamar-te a ti
e a tudo o que dizes e fazes Evangelho, Boa Notícia… finalmente, perceber,
não como quem entende o que lhe foi transmitido
mas como quem se sente renascer…
Ser tocado por ti, Re-Suscitado,
e perceber que já hoje tens o poder do Espírito
para Re-Suscitar a nossa Vida também…
Procuramos este Dinamismo do Reino na nossa própria Vida, na maneira que temos de ler a nossa história, de lidarmos com os nossos demónios, fantasmas e feridas...
Procuramos este Dinamismo do Reino também no modo como nos relacionamos com os outros e interpretamos os acontecimentos…
Procuramos o Dinamismo do Reino como proposta de Vida, como chamamento, campo de missão e experiência de que o próprio Deus conta connosco para um Projecto Seu!
No fundo, procuramos o Dinamismo do Reino em forma de cura, conversão e vocação.
Por isso, procuramos sobretudo Jesus, na certeza que é no encontro com ele que tudo em nós pode começar de novo.
Procuramos este Jesus que nos diga “Segue-me!” de tal maneira que seja – finalmente – impossível recusarmo-nos a fazê-lo!
Procuramos este Jesus, que proclama a Boa Notícia do Reino como Esperança e Sabedoria, para o seguirmos como discípulos. E queremos, a caminho, descobrir de verdade o que é que isso significa de “ser discípulo” seu…
Procuramos este Jesus que na intimidade nos toca, onde dói às vezes, nos impõe as mãos e nos cura do que não nos deixa ser gente inteira, digna ou feliz.
Procuramos este Jesus que com toda a autoridade do Espírito ordena aos nossos demónios e espíritos impuros que se calem e saiam de nós, e depois se senta ao nosso lado para dar-nos o gosto da paz e da alegria serena de nos sentirmos livres.
No fundo, procuramos descobrir Jesus como se descobre um Mestre e um Salvador, e fazer com ele uma experiência de renascimento tão profunda que a nossa Vida se torne numa homenagem à sua!
Por isso, procuramos penetrar no mistério da sua condição filial, da sua unidade com Deus que se torna ponto de unidade de Deus connosco.
Procuramos a intimidade com o Mistério Permanente da Vida a que chamamos Deus e Jesus experimentou como Abba-Pai, numa extraordinária pertença filial.
Procuramos experimentá-la também, essa pertença ao mundo de Deus pela consanguinidade do Espírito Santo que nos anima como Corpo do Homem Novo e Família de Deus.
Procuramos os segredos da oração, da comunhão profunda com o Deus da Vida, como quem toca a existência por dentro e lhe percebe o Sentido, a força, a vitalidade eterna e a vontade não-desistente de Deus em conduzir-nos ao Banquete da Sua Casa.
Procuramos caminhos e ritmos para fazermos de tudo isto uma descoberta quotidiana e ganharmos um novo gosto de viver, tornarmo-nos pessoas mais felizes, mais serenas e mais realizadas, tal como acreditamos que o Deus de Jesus gosta que sejamos.
Procuramos a Sabedoria do Evangelho que só o Espírito Santo pode fazer acontecer no nosso íntimo, de tal modo que nos tornemos nós “Evangelho-Boa Notícia” para aqueles que nos peçam as razões da nossa Esperança…
Procuramos tocar e ser tocados.
Sim! Por Jesus, pela Boa Notícia do Reino e pela ternura paternal do Deus do Reino, pela acção não-desistente do Espírito Santo e pela riqueza dos Irmãos.
SHALOM
É a grande proclamação de Jesus: “O Reino de Deus está Próximo!” Ficai sabendo que o Reino de Deus chegou!” “Não espereis que venha de maneira visível, porque o Reino de Deus está no meio de vós!”
Este Reino de Deus esperado está já ao alcance. Venceu o tempo da Promessa e o tempo da expectativa. Já chegou a Plenitude dos Tempos… Este Reino está inaugurado. No entanto, quando Jesus fala dele, muitas vezes diz ainda: “Naquele dia…” E quando os discípulos lhe dizem: “Ensina-nos a orar”, uma das coisas que lhes ensina é a dizer: “Pai… Venha o Teu Reino!”
O Reino de Deus não chegou como uma instituição, como uma norma, como uma moral… Não “foi” um momento na história, mas é um dinamismo no seio da história humana e na história dos Cosmos a conduzir tudo à sua Vocação plena…
“Venha o Teu Reino…” Este “pedir” do Reino obedece à mesma lógica do Amor… Já reparaste que só dizemos “Ama-me!” ou “Diz-me que gostas de mim!” a alguém por quem já nos sabemos muito amados? Ninguém “pede” Amor a ninguém para tirar dúvidas, mas para saborear o que tem como certo. Porque o Amor não se pede… acolhe-se. “Pedir” sinais e palavras de Amor é uma maneira apenas de reconhecer que esse Amor existe, é verdadeiro, não é estático, ainda não se esgotou, e é importante para nós.
…existe… é verdadeiro… não é estático… ainda não se esgotou… é importante para nós…
Assim é o Reino de Deus. Esse Reino que com Jesus aprendemos a anunciar próximo, ao alcance, chegado… e também com ele aprendemos a pedir sempre: “Pai Nosso, venha a nós o Teu Reino…”
“Pedir” o Reino, clamar por ele, é uma maneira de reconhecermos na Fé que o Reino de Deus existe, é verdadeiro, não é estático, ainda não se esgotou e é importante para nós! Como o Amor…
E talvez seja mesmo essa a melhor maneira de falar do Reino, como o Dinamismo do Amor de Deus por nós a acontecer na nossa história, Amor que gera Aliança e nos dá a certeza disto: “Quando te digo que te amo, estou a assegurar-te que nunca morrerás!”
O Dinamismo do Reino é a Vitalidade de Jesus Re-Suscitado, porque o Reino é a maneira de viver de Jesus. Por isso é que ainda não se esgotou nem acabou… porque Jesus foi Re-Suscitado, o Reino foi continuado!
Jesus não é um “morto ilustre”, alguém tão importante que passados 2000 anos continuaria a fazer eco e a fazer-nos procurar o seu jeito de actuar, e o Reino de Deus não é simplesmente a sua mensagem. Se acreditamos que Jesus é o Vivente, acreditamos que ele continua hoje a falar, a viver, a propor, a curar, a tocar, a chamar… Porque Jesus é o Vivente, o Reino de Deus é um Dinamismo Presente e contínuo, porque o Reino de Deus é a sua maneira de viver. Inaugurado na sua história, Plenificado na sua ressurreição.
Não é a sua mensagem antiga de outra coisa qualquer que não seja ele mesmo, no mais íntimo das suas escolhas, na vitalidade das suas acções e no horizonte novo das suas palavras e parábolas. O Reino de Deus é a própria acção do Espírito nele a consagrá-lo e gerá-lo continuamente como filho, essa acção do Espírito que, na sua ressurreição, como uma explosão, se difunde para toda a Humanidade.
O Reino de Deus tem a “sorte” de Jesus, segue-lhe os passos… Estava Presente porque Jesus estava Presente, porque o habitava inteiro… Era o próprio Dinamismo do Espírito de Deus que o habitava e pelo qual o chamamos “Messias”…
Na sua Páscoa-Passagem para o Pai é exaltado e glorificado, e a sua maneira de viver, confirmada por Deus e derramada com o Espírito Santo para todos, torna-se o ponto de encontro do Reino de Deus connosco… Jesus é Re-Suscitado no Amor do Pai, e o Reino de Deus é Re-Suscitado [suscitado de novo, na plenitude do Espírito] também com ele e através dele para todos.
O Reino de Deus torna-se, assim, não só a maneira de viver de Jesus, mas a maneira de viver do Homem Novo. Nós somos o Corpo do Homem Novo, do qual Jesus é a Cabeça, o princípio. O Reino de Deus é uma nova maneira de meter-se na aventura de ser pessoa, uma nova maneira de ser gente, à medida do Homem Novo, Jesus, e com a força do Espírito Santo, que é o Sangue do Corpo do Homem Novo.
Chamar a Jesus “Homem Novo” significa reconhecer que na sua ressurreição Deus o constitui princípio de uma Nova Humanidade, uma Humanidade que se reconhece e constrói na Filiação Divina incondicional e na Fraternidade Humana universal. O Reino de Deus tem a ver com tudo isto… Acolher e Colaborar com o Reino de Deus é apenas outra maneira de dizer Acolher e Colaborar com a Família de Deus…
Se o Reino de Deus é a maneira de viver do Homem Novo, a condição de uma Nova Humanidade que se entende e constitui na Familiaridade Humano-Divina fraterna e filial, então temos que reconhecer que o Reino de Deus ainda não acontece no Corpo inteiro como aconteceu já na Cabeça…
Por isso é que pedimos sempre “Pai… Venha o teu Reino!” Porque o Corpo do Homem Novo está permanentemente a ser gerado, o Cristo Total [Cabeça e Corpo] está ainda em geração e em parto… “A própria Criação geme com as dores do parto até que se manifeste” a plenitude de tudo isto, “a manifestação total dos filhos de Deus”. A Criação está permanentemente a gerar para Deus uma Humanidade recriada pelo Espírito Santo… A Nova Humanidade é um Corpo Filial, do qual Jesus é a Cabeça…
A plenitude do Reino transcende a fronteira da morte e os limites da história humana. Reino e Família de Deus são “sinónimos”, e a plenitude desta realidade é a Assunção da Família Humana no seio da Família Divina com a libertação que isto implica, finalmente: o fim da morte no processo de Viver, o fim do pecado no processo de Amar. A Divinização do Ser Humano plenifica-o na sua capacidade de Viver e Amar.
Porque a plenitude do Reino – e a plenitude do que somos – se realiza para lá do que as nossas mãos já apalpam é que o Reino de Deus, sendo Próximo, tem permanentemente a dimensão da tensão, da expectativa, do não-cumprimento, da antecipação, da esperança… dizemos tudo isto em forma de súplica: “Venha o teu Reino!”
15 Ouvindo isto, um dos convidados disse-lhe: «Feliz o que comer no banquete do Reino de Deus!»
16 Ele respondeu-lhe: «Certo homem ia dar um grande banquete e fez muitos convites.
17 À hora do banquete, mandou o seu servo dizer aos convidados: 'Vinde, já está tudo pronto.'
18 Mas todos, unanimemente, começaram a esquivar-se. O primeiro disse: 'Comprei um terreno e preciso de ir vê-lo; peço-te que me dispenses.'
19 Outro disse: 'Comprei cinco juntas de bois e tenho de ir experimentá-las; peço-te que me dispenses.'
20 E outro disse: 'Casei-me e, por isso, não posso ir.'
O Reino de Deus está a acontecer em todos os “quadros” ao mesmo tempo, em todas as “etapas” simultaneamente. E diante de todas as atitudes possíveis, há uma intocável: o anfitrião não renuncia ao Banquete, não desiste da Festa!
O Anfitrião que não abranda o seu zelo, os que são convidados, os que são levados, os que ainda nem sabem de banquete nenhum, os que já lá estão na Festa à espera de mais… Tudo está a acontecer simultaneamente, agora. E percorre a história como que um impulso que “empurra” tudo, um dinamismo que não abranda para conduzir tudo ao seu fim…
O Dinamismo do Reino está a acontecer permanentemente como um impulso de Salvação do nosso Deus que percorre o Cosmos inteiro para o conduzir à sua meta e a nós nos chega através de Jesus, como que se descobríssemos o agir salvador de Deus “descodificado” para nós na sua maneira de viver.
Esse é o dom da Incarnação: acontece em “grandeza humana” o desígnio salvador de Deus de maneira a poder ser acolhido por nós. Porque a Salvação é um dom de Amor, não podia ser uma imposição. O acolhimento livre e agradecido era uma condição indispensável para fazermos a experiência deste dom de sermos salvos. Jesus de Nazaré é o Fiel, incondicionalmente acolhedor deste dom, livre nele e para ele, agradecido até ao dom de si mesmo…
Na sua vida ganhou Carne o agir salvador de Deus, o dom da filiação no Seu Amor… Por isso “ele não podia ficar sob o domínio da morte”, e a sua Vida glorificada, Re-Suscitada, tornou-se ponto de encontro do Ser Humano com este Dom do Amor Salvador de Deus.
Foi para isto que Deus nos sonhou ao criar-nos à Sua imagem e semelhança no Amor e na necessidade da Comunhão para nos tornarmos nós mesmos. Sonhou-nos e Criou-nos capazes de Aliança e Familiaridade para nos tornar membros da Sua própria Família. Esta é a Nova e Eterna Aliança, a meta da Criação, da qual Jesus é o Mediador.
Este desígnio salvador de Deus, este querer/agir salvífico do nosso Deus está a acontecer Agora! É esse o Dinamismo do Reino… Acredito que a Vida de Jesus é o acontecimento humano deste agir de Deus, e Jesus está Vivo! Agora…
Acredito que experimentar o Dinamismo do Reino implica também fechar os olhos um pouco para nos sentirmos envolvidos por uma outra “atmosfera”, chamemos-lhe uma “Teosfera”, como um ambiente enorme que nos envolve, circunda, toca por todos os lados e penetra cada poro… Como uma brisa que silenciosamente tudo toca, penetra, conduz, beija, silencia… ou como o leito de um rio sereníssimo, onde te deixas ir sem medo ao sabor da corrente, onde nos deixamos levar confiantes…
Pertencemos a um dinamismo de Vida que ultrapassa infinitamente a existência quotidiana e quase sempre distraída dos nossos dias mornos… Mas já todos experimentámos como a Vida pode ser grandiosa! Quando experimentamos o Amor, a Beleza, a Surpresa de sermos capazes de tantos “impossíveis”, a capacidade de darmos a Vida por alguém ou alguém a dar por nós… Bem sabemos que a Vida pode ser grandiosa! Já o experimentámos…
O Reino está aí, acredito, nesse grandioso da Vida que não é ufano nem efémero, e a sua plenitude ainda está por acontecer! Grande Vida nos espera, grande Festa nos está preparada!
Saboreamos este Dinamismo do Reino como energia divina que nos envolve, como agir divino que nos circunda… como diziam os salmistas antigos: “Rodeias-me por todos os lados… Sabes quando me sento, quando me levanto, ainda a palavra não me chegou á língua e já tu a conheces perfeitamente… Vou ao mais alto monte para me ausentar de ti, ao fundo do mar ou ao outro lado do horizonte, e tu aí estás, sempre me precedes… Como poderei fugir de ti?”
E ao saborearmos tudo isto, perguntamo-nos como falar disto. “Como havemos de falar do Reino?” “Fala de Jesus, olha qu’esta!”, disseram-me estes dias…
Sabemos que Jesus nunca deu definições do Reino… Ele mesmo se fez esta pergunta e depois contava parábolas. Ao faze-la hoje, damo-nos conta que a melhor maneira de responder à pergunta “O que é o Reino de Deus?” é tentar responder a esta outra: “Quem é Jesus de Nazaré?”
Acredito que em Jesus de Nazaré não se revelam “características de Deus” ou “traços do seu rosto”, não percebemos “como Deus é”… que são tudo lógicas muito filosóficas, de um “deus” parado, um “deus divino” demais, “transcendentemente distante” como todos os “deuses muito divinos”…
Acredito que em Jesus manifestam-se Atitudes de Deus! Não é “Deus” que é revelado em Jesus como um divino transcendente, ou como um conceito filosófico para depois dizermos “deus é assim e assado”, mas é o Agir de Deus que se revela em Jesus!
Por isso o evangelista João lhe chama “Verbo”, Palavra em acção, porque Jesus é a Comunicação do Agir de Deus, como que o desbordar do Agir de Deus “para fora” de Si mesmo, da Sua Comunhão… Na sua vida Jesus revela/realiza esta Comunicação de Deus, este Agir que extravasa “o mundo de Deus” e s incarna na nossa história como um Dinamismo Criador e Salvador a que chamamos Reino de Deus! Jesus é o Verbo, a Palavra-Acção de Deus, não o “conceito” ou a “definição” de Deus. Não é “No princípio era o Conceito…”
Acredito que o Reino de Deus é este Dinamismo do Seu Agir entre nós não isolado num momento da história nem esgotado na Vida individual de ninguém, nem sequer na de Jesus.
Acredito que o Reino de Deus, este Dinamismo do Amor de Deus, é a própria maneira de viver de Jesus, que Vive hoje na abundância de Vida do Espírito Santo, e é para nós hoje revelação/realização do Agir Criador e Salvador do nosso Deus!
Se acredito na sua ressurreição, acredito que esta maneira de Viver ultrapassa a morte, é eterna, é uma maneira de viver que sintoniza com o próprio Viver de Deus e é n’Ele plenificada.
Acredito que o Reino de Deus é uma maneira de dizer o Dinamismo do Amor de Deus por nós a acontecer na nossa História.
Acredito que é uma maneira de dizer a acção de Deus-Família no seio da História Humana como emergência de familiaridade humano-divina, pertença ao projecto de Deus, Aliança!
Acredito que o Reino de Deus é a maneira de viver de Jesus, e por isso não acaba mais porque ele é o Vivente. Não é um morto ilustre e o Reino a sua mensagem antiga que ainda hoje faz eco, mas é o Vivente e o Reino a sua Vitalidade a acontecer permanentemente de maneira nova pela força do Espírito.
Acredito que o Dinamismo do Reino de Deus é como um “ambiente salvífico” em que a minha Vida se desenrola, como um menino que cresce sob o olhar cheio de ternura Paternal/Maternal, umas vezes encantado e apaixonado, outras vezes paciente e compassivo...
E, como quem mastiga isto tudo, fica o meu silêncio cheio de sabores diferentes que gostava de saber partilhar bem… Mastigando tudo isto, como quem saboreia o melhor, percebo que não posso encerrar a minha Vida em mim próprio, no meu tempo e no meu espaço.
Percebo que não estão em mim os limites de mim mesmo… pertenço a um Projecto de Vida que ultrapassa infinitamente os meus limites individuais. E, por pertencer-lhe, esse Projecto de Vida também me pertence a mim, ou seja, eu mesmo sou do seu tamanho, infinitamente para além dos meus limites, maior do que penso e do que vejo tantas vezes em mim…
Até fisicamente é verdadeiro isto! Onde começo e termino eu? Na superfície epidérmica do meu corpo? Que ilusão… Os átomos que me compõem têm milhões de anos e já estiveram na composição de milhões de organismos diferentes, e até a superfície mais exterior do meu corpo está em interacção com um universo quase infinito de moléculas que me circundam e vitalizam neste Cosmos a que pertenço! E o ar que respiro continuamente… e a água que me compõe… sou Um com o universo inteiro! Até ao nível físico me parece hoje evidente que não sou tão pequeno quanto me vejo, que não estão tão aquém quanto parece onde começo e onde acabo… Viver é Pertencer! E isto é imenso…
Ao nível pessoal/espiritual não é apenas imenso, mas é Eterno. Isto ensina-me que não posso fechar a minha Vida nas fronteiras do que sou agora, sinto agora, faço agora, sofro agora, espero agora…
Não posso cair na tentação de julgar que não tenho mais salvação, que a minha Vida esteja alguma vez irremediavelmente estragada ou perdida, bem como a daqueles a quem ainda estou disposto e capaz de dar-me amorosamente. Jesus não me permite acreditar numa coisa destas, no fim de mim mesmo! Ele é o que diz aos sepultados: “Levanta-te e caminha!” e eles levantam-se mesmo!
Perceber que o Dinamismo do Reino de Deus “em que vivemos, nos movemos e existimos” se revela e realiza na maneira de viver de Jesus faz-me entender a Vida como Comunhão, e a Comunhão como Corpo.
Faz-me gostar daquilo que é gratuito.
Faz-me dar importância verdadeira, prática, quotidiana, àquilo que se alcança sendo simples, verdadeiro e generoso. Faz-me fugir de maneira prática e quotidiana daquilo que se conquista sendo soberbo, hipócrita e egoísta.
O Dinamismo do Reino de Deus mete-me na Aventura das Bem Aventuranças… e não se pode dizer que é “poesia” o que valeu a pena de morte àquele que as disse. É injusto e escandaloso dizê-lo!
Então, olho para Jesus através dos olhos dos primeiros evangelistas, e procuro as portas para eu mesmo entrar nesse Relato do Reino a acontecer, encontrar-me dentro do Evangelho, através dos evangelhos, e acompanhar Jesus à mesa, a caminho, no silêncio das manhãs ainda a nascer, no trato com os discípulos, nas denúncias públicas, nas disputas com os fariseus e doutores da Lei, nos encontros com as pessoas, nas confidências com os mais próximos, na dureza do deserto e na angústia do Getsemani, no entusiasmo das pregações e no sussurro das coisas ditas na última ceia…
Jesus que fala, toca, chama e cura!
Jesus que escuta, é tocado, responde e acolhe!
Faz-me procurar tudo isto hoje, no meu hoje, sem me exigir os moralismos que às vezes imponho a mim próprio, sem me obrigar a dizer a palavra “pobres” se de facto não conheço nenhum, sem me obrigar a ser bom nem a encaixar em nenhum modelo de santidade… porque não me convida senão para o Reino de Deus! E esse não é uma norma que se segue nem uma forma que se assume… é uma maneira de viver que se descobre seguindo a sua maneira de viver. “Segue-me”… parece que é sempre esse o convite para o Reino de Deus…
Faz-me descobrir quem sou libertando-me de tudo o que tenho dentro de mim a dizer-me o que “devo ser”. Aceita-me assim, acolhe-me assim, ama-me assim, não porque quer que eu seja sempre como sou, mas porque quer fazer de mim outro, mais feliz, mais livre, mais consigo!
E eu consigo… Eu sei que, consigo, consigo!
O melhor da nossa Vida está sempre marcado por pessoas que conhecemos. Antes do melhor que vivemos, no início de cada etapa de “Vida cheia e em cheio”, podemos sempre dizer com certeza absoluta: “hummm… apareceu alguém!”
A verdade é que precisamos de conhecer gente boa para sermos felizes. Não é?
Era uma vez um homem encantador chamado Jesus. Lá na aldeia dele, e depois por onde andou, todos o chamavam “Yeshu”, o diminutivo de “Yeshuah”. E chega de falar dele no passado… Porque, a verdade é que Jesus é um homem fascinante!
Exerce um extraordinário poder de atracção e, à medida que o vamos conhecendo, damo-nos conta que ele se transcende a si mesmo. Não tem em si o fim de si mesmo, é porta aberta a um Mistério de Vida Maior ao qual ele pertence inteiro… Esse Mistério percebemos que não é “daqui”, mas também não é “de longe”… é Íntimo!
Talvez seja esse o verdadeiro significado da transcendência… a absoluta intimidade ou interioridade… Percebemos isso nele. Transcendência não é distância nem lonjura… é interioridade, intimidade… não é ultrapassar uma distância, mas ultrapassar a superficialidade…
Ele é assim, encantador, e abre-nos a mundos sempre novos, e sempre próximos…
Todos o sentem, ao mesmo tempo, como alguém admiravelmente próximo e inquietantemente “outro”, único… Numa maneira de o sentirmos único que nos faz perguntar “Quem é ele?” e “O que o habita?”… Desde o princípio que é assim, que estas perguntas surgem no convívio com ele.
É alguém com uma capacidade extraordinária de “sintonizar”, de fazer-nos experimentar a comunhão. Nesta capacidade de sintonizar connosco, convida-nos a entrar em intimidade consigo. Se deixamos, percebemo-nos mergulhados no seu próprio ambiente interior de intimidade, ou seja, na sua maneira de falar com Deus, de olhar para as pessoas, de interpretar os acontecimentos e de lidar com as situações…
Quando nos convida a entrarmos em intimidade com ele, está a convidar-nos a entrarmos na intimidade dele!
Espanta-nos a sua maneira de fazer algumas coisas, desconcertam-nos coisas que diz, provocam-nos convites que nos faz, doem-nos até feridas em que nos toca às vezes… Mas parece que não conseguimos abdicar dele, quando o conhecemos a ponto de o amarmos… Nem quereríamos nunca que ele fosse diferente, apesar de às vezes nos queixarmos.
É espantoso como nele coabitam de maneira tão harmoniosa a tolerância e a exigência… Que mistério de grandeza humana o Espírito Santo faz acontecer no seu íntimo! Que fidelidade a sua aos apelos deste Espírito para se ter constituído um Ser Humano deste “tamanho”! Como dizia um teólogo há umas décadas: “Humano tão humano?! Só pode ser Deus mesmo!” Porque o Divino não é o contrário do Humano… antes, a sua Plenitude!
Aqueles que se sentiam mais interpelados por ele, já nos relatos evangélicos, e o seguiam, acabavam sempre por andar atrás dele a tentar descobrir o que tinham realmente feito! Segui-lo era uma experiência paradoxal, ambígua, às vezes… e, sobretudo, “custosa” de encaixar dentro dos esquemas pré-concebidos que levavam com eles quando se tinham decidido a segui-lo…
Iam percebendo que era preciso nascer de novo para ser discípulo de um Mestre assim…
Era um homem com uma capacidade de acolhimento e tolerância como nunca tinham visto, mas que ao mesmo tempo fazia acontecer dentro deles um apelo de exigência tão profundo, um convite à mudança tão intenso que às vezes lhes pareceria o Mestre quase uma “ameaça”, como quem se preparava para lhes tirar tudo…
Por isso até o tentavam converter aos seus próprios esquemas e lógicas… Pedro, Tiago e João, de maneira particular, bem podiam dar testemunho disso, e como lhes correram mal as tentativas…
Nos evangelhos encontramos pedaços destas dificuldades dos discípulos com Jesus e de Jesus com os discípulos e com os “candidatos a”…
Lemos Lc 9, 43-62
43 E todos estavam maravilhados com a grandeza de Deus. Estando todos admirados com tudo o que Ele fazia, Jesus disse aos seus discípulos:
Ser discípulo de Jesus não é para todos… mas também não é para os melhores! É para os que têm “aquilo”… que eu não sei dizer o que é ao certo mas parece-me que tem a ver com deixar-se pôr em causa e ser capaz de mudanças… “aquilo” acho que tem a ver com ser capaz de depositar Fé em alguém…
O seguimento de Jesus é uma experiência de Fé. Para nós, hoje, é fácil confundirmos Fé em Jesus com a crença nos dogmas e títulos cristológicos: chamamos-lhe Filho de Deus e dizemos que acreditamos; dizemos que ressuscitou e acreditamos… Mas ter Fé em alguém é coisa diferente, não é? Não é uma questão simplesmente religiosa ou dogmática, não coincide com a crença em títulos religiosos…
Vamos antes disso?
Quando aqueles primeiros, que já olhavam o mestre com alguns “dogmas” também, viram morrer isso tudo… Olhavam para o Mestre como Messias Davídico, olhavam para o Reino como restauração política… e outras coisas. Na morte de Jesus morreram todos os dogmas e ficou Jesus só, a sua Vida ficou a nu! A vestimenta Dogmático-Messiânica foi-lhe retirada, lançada em sortes pelos soldados romanos e, na sua morte, rasgada de alto a baixo como o Véu do Templo. Ficou Jesus só, e a sua Vida a nu!
Então, naqueles três dias diante disto dentro de si, o Espírito encontrou as condições para fazer deles aquilo para o qual Jesus os preparara… Pela experiência pascal, redescobriram o Mestre de maneira nova. Agora viam-no novamente digno, vivo, revestido com a abundância do Espírito de Deus que o amava como o tal Abba de que ele lhes falara, revestido da confirmação divina da sua maneira de viver, que tantas vezes os tinha escandalizado e surpreendido… e a sua morte na cruz tinha sido o momento maior desse escândalo e surpresa…
Depois é que começaram a chamar-lhe “o Senhor”, o Vitorioso, o Vivente… E, a partir daí, começa a história dos títulos cristológicos, ou seja, muitas maneiras de tentar dizer a abundância do Poder Salvador que Deus actua nele e através dele. Muitas maneiras, muitos títulos, muitas linguagens, porque é uma Boa Notícia que não se esgota…
Mas antes… antes, a origem evangélica da Fé em Jesus tem a ver com ter Fé nele dando crédito à sua Notícia. Acreditar que ela é Boa, e dar-lhe crédito! Dar-lhe crédito a ponto de o seguir, dar-lhe crédito a ponto de deixar/possibilitar que essa Boa Notícia trazida pela sua presença actue em nós como renascimento, libertação e vocação…
Por isso é que Jesus diz sempre: “Foi a tua Fé que te salvou!” Talvez façamos poucas experiências de Salvação no concreto dos nossos dias por não estarmos muito “treinados” nesta Fé no sentido do Evangelho, ou seja, de dar crédito à palavra de Jesus a ponto de acreditarmos mesmo que é verdadeira, eficaz e actual.
Ficamo-nos muitas vezes pela “fé religiosa” à procura das transformações, esperando sinceramente que Deus faça qualquer coisa…
A Fé Evangélica é um acolhimento… como dizer isto? Ter Fé é Acreditar a Boa Notícia de Jesus, de tal modo que a tornamos eficaz em nós. É mais do que Acreditar NA Boa Notícia… é Acreditar A Boa Notícia. Mais do que acreditar nela é acreditá-la em nós mesmos! Este é o caminho das maravilhas a acontecer na nossa Vida… Dar-lhe crédito é dar-lhe eficácia. “A tua Fé te salvou! A tua Fé te curou!”
As perguntas da Fé são estas: “O que queres que eu te faça? Acreditas que eu posso?!” Isto é que muda tudo…
Mt 9, 27-29: “Enquanto Jesus ia a caminho, dois cegos aproximaram-se dizendo: Filho de David, tem piedade de nós! Quando entrou em casa, Jesus disse-lhes: Acreditais que eu posso fazer isso? Eles responderam: Sim, senhor!
Ele tocou-lhes nos olhos e disse, então: Aconteça como vocês acreditam!”
Lembro-me também do pai do menino epiléptico (Mc 9, 17-27), que disse a Jesus: “Se podes alguma coisa, tem piedade de mim e ajuda-me!” E Jesus respondeu: “Se posso?! Tudo é possível a quem acredita!” Imediatamente o pai do menino gritou: “Eu acredito! Mas socorre a minha falta de Fé…”
A Fé, “muita ou pouca” no Evangelho, não tem a ver com os dogmas cristológicos ou com as devoções dos crentes, mas com a abertura sincera ao poder de Jesus. Não é simplesmente acreditar que ele “é isto ou aquilo”, mas que ele “pode” aquilo que diz e se diz dele…
A mais radical atitude de Fé nele é segui-lo, tornar-se seu discípulo. Mas do que acreditar no que ele diz e se diz dele, acreditá-lo com a própria vida e com o próprio seguimento.
Seguir Jesus hoje já é muito mais do que gostar daquele galileu e do que ele dizia e fazia… é mais do que procurar ser fiel à sua mensagem ou mesmo viver ao seu jeito… é isto, sim, na fidelidade a esse galileu que mataram fora dos muros santos de Jerusalém, mas é muito mais… Porque seguir Jesus, hoje, é seguir um Re-Suscitado! E isso muda tudo… TUDO!
Porque não é igual ser discípulo de um Mestre ou seguidor de um Re-Suscitado! Acho que às vezes nem nos damos conta do “bico d’obra” em que nos metemos ao proclamar os testemunhos evangélicos da sua Boa Notícia e, ao mesmo tempo, cantarmos “Alelu’Ya” ao Senhor Re-Suscitado e Vitorioso sobre o pecado e a morte, confirmado por Deus e glorificado na abundância do Espírito Santo…
Já reparaste na força que ganha o Evangelho quando dizemos que aquele que é a sua origem está Re-Suscitado por Deus?! Significa que não podemos por em causa a verdade, a eficácia, o poder desta Notícia que Jesus anunciou e viveu… o próprio Deus o confirmou!
Pensa nalgumas coisas que Jesus te diz como Evangelho… aquelas que te lembras mais espontaneamente… Di-las dentro de ti, devagar e, depois de cada uma, toma consciência que quem to diz é Jesus Re-Suscitado, alguém que vive para sempre e é mais forte do que todo o pecado e toda a morte e toda as experiências de fracasso na tua Vida…
Repetes dentro de ti essa frase ou expressão que Jesus diz… e depois lembra-te que aquele que ta diz está Vivo para sempre, que o próprio Deus confirmou, ao Re-Suscitá-lo, isso que ele te diz hoje de novo… o próprio Deus confirmou isso que estás a lembrar-te que Jesus te diz… o próprio Deus confirma que isso é verdadeiro, que funciona para seres feliz, que é por aí o Caminho, a Verdade e a Vida…
Eu posso dizer-te algumas rápidas, se não te lembrares…
“Segue-me, e receberás cem vezes mais”…
“Bem Aventurados os pobres, os misericordiosos, os mansos, os famintos e sedentos de justiça”…
“Vinde a mim todos os cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”…
“Não tenhais medo”…
“Não andeis sempre preocupados e atarantados com o dia de amanhã”…
“Aquele que guarda a sua Vida perde-a, aquele que a gasta salva-a”…
“Eu estou sempre convosco”…
Na sua ressurreição, o próprio Deus confirma que tudo isto é verdadeiro, duradouro, eterno e eficaz! Deus não chamaria “seu filho, seu deleite” e não constituiria como “Cabeça de uma Nova Humanidade e dador do Espírito da Filiação” um charlatão! Deus confirma que Jesus é verdadeiro e a sua Boa Notícia é para sempre.
Todo o Evangelho por ele proclamado e vivido foi confirmado pelo punho de Deus: é verdadeiro! O próprio Jesus assinou a verdade indiscutível do seu Evangelho pela sua morte, e Deus assinou essa verdade pelo poder da sua ressurreição. É verdadeiro e é eterno. Desapareçam os medos de dentro de nós, aprendamos a Fé e não fujamos da experiência dos “três dias” que todos os discípulos têm que fazer… e vamos ver como essa Verdade nos merece mesmo a Vida!
Lemos Lc 11, 1-13
1 Sucedeu que Jesus estava algures a orar. Quando acabou, disse-lhe um dos seus discípulos: «Senhor, ensina-nos a orar, como João também ensinou os seus discípulos.»
2 Disse-lhes Ele: «Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome; venha o teu Reino;
3 dá-nos o nosso pão de cada dia;
4 perdoa os nossos pecados, pois também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;e não nos deixes cair em tentação.»
5 Disse-lhes ainda: «Se algum de vós tiver um amigo e for ter com ele a meio da noite e lhe disser: 'Amigo, empresta-me três pães,
6 pois um amigo meu chegou agora de viagem e não tenho nada para lhe oferecer',
7 e se ele lhe responder lá de dentro: 'Não me incomodes, a porta está fechada, eu e os meus filhos estamos deitados; não posso levantar-me para tos dar'.
8 Eu vos digo: embora não se levante para lhos dar por ser seu amigo, ao menos, levantar-se-á, devido à impertinência dele, e dar-lhe-á tudo quanto precisar.»
9 «Digo-vos, pois: Pedi e ser-vos-á dado; procurai e achareis; batei e abrir-se-vos-á;
10 porque todo aquele que pede, recebe; quem procura, encontra, e ao que bate, abrir-se-á.
11 Qual o pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente?
12 Ou, se lhe pedir um ovo, lhe dará um escorpião?
13 Pois se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!»
As respostas de Jesus costumavam ser tramadas… A tal ponto que nos aparecem nos relatos evangélicos frases como esta:” Os discípulos queriam fazer-lhe perguntas, mas não se atreviam…”
Piores que as suas respostas, normalmente, só as suas perguntas… “Quem dizem os homens que eu sou?!” “Pode-se fazer o bem ao sábado?!”
E quando a resposta era uma pergunta, então estava o caldo entornado: “O que está escrito na Lei, que lês tu?!” “O Baptismo de João era do céu ou da terra?!”
Quando os discípulos lhe pedem: “Mestre, ensina-nos a orar”, é das poucas vezes que encontramos nos evangelhos uma resposta directa…
A maneira de orar não é uma questão de fórmulas ou métodos próprios de um grupo religioso… Tem a ver com a própria imagem de Deus! É isso que está em causa, é essa a mudança que os discípulos percebem que está a acontecer. Ao Iahvéh do Templo não se podia rezar como Jesus fazia… Ao Iahvéh dos Fariseus, não se podia rezar como Jesus fazia…
Quando os discípulos pedem: “Ensina-nos a orar” não está em causa COMO Jesus orava, mas A QUEM…
Entrando em intimidade com Jesus, começamos a sentir-nos “à porta” de um mundo íntimo maior, o mundo da sua familiaridade com Deus e da sua proximidade com toda a realidade, com as pessoas que encontrava e as situações que vivia…
A intimidade com ele é a porta de entrada para a intimidade dele, e é aí que percebemos que estamos diante do novo. “Certa vez, estava num lugar orando… e quando terminou, um dos discípulos pediu-lhe…”
É uma pergunta diante do novo, diante de uma experiência de fascínio, certamente, por contemplar a intimidade de Jesus com Deus e a sua proximidade da realidade.
Acredito mesmo nisto: que a intimidade com Deus nos faz próximos da realidade, ou seja, mais vivos, mais vigilantes, mais lúcidos, mais sábios, mais solidários… A oração ao jeito de Jesus é um dos exercícios dos que procuram o Reino. A tentação de fazer da Fé e da oração um movimento espiritual fechado num “ciclo de dois”, eu e Deus, é antiga… Foi mesmo um dos primeiros problemas na Igreja primitiva, presente já nos textos do Novo Testamento que desmontam o perigo do Gnosticismo.
Os gnósticos (de gnose, em grego, que significa conhecimento) eram cristãos, pertencentes às comunidades, que viviam uma Fé baseada no conhecimento intelectual de Deus, numa relação puramente individual e espiritual; para eles, Deus era um ser Supremo, uma Divindade sem rosto, e Jesus era um mestre escolhido que veio ensinar o caminho até essa divindade.
Os gnósticos separavam totalmente o chamado mundo “espiritual”, superior, divino, e o mundo “terreno”, material ou humano. O caminho para a divindade passava pela separação do “terreno” e subida ao “espiritual” através do conhecimento.
Diante disto, aparece-nos por exemplo a Primeira Carta de João, a iniciar assim: “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida” (1Jo 1, 1). Ao contrário da noção grega de conhecer (intelectual), o autor da Carta opõe a noção hebraica: conhecer é comungar, relacionar-se, sentir, aproximar-se, deixar-se transformar. Ver a Deus significa amar e viver na comunhão com Deus deixando-se transformar: mais que uma questão intelectual, é uma questão vital de tornar-se o que Ele é: “O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é. Todo o que tem esta esperança em Deus, torna-se puro, como Ele, que é puro.” (1Jo 3, 2-3)
“Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos dele este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão.” (1Jo 4, 20-21)
“Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos.” (1Jo 3, 16).
Percebendo que Intimidade com Deus e Proximidade da realidade são um movimento só, que a Filiação Divina se exprime e realiza na Fraternidade Humana, chegamos talvez à frase mais forte de todo o Novo Testamento: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é Amor.” (1Jo 4, 7-8)
Perante a tentação do conhecimento não-relacional dos gnósticos, o autor apresenta o verdadeiro caminho da relação com Deus (podíamos dizer, na raíz latina, o verdadeiro caminho da re-ligião): o Amor, entendido como vivência do amor fraterno, construção da comunhão ou, em linguagem evangélica: o Reino de Deus.
Quando pedimos a Jesus, “Ensina-nos a orar”, estamos a pedir para entrar não só em intimidade com ele, mas na intimidade dele, descobrir o seu mundo de diálogo com Deus, com a realidade, com os acontecimentos, com as pessoas, com a criação…
Não procuramos um “método de oração” nem uma “maneira de rezar”, mas um jeito de viver, o seu… no fundo, a Sabedoria do Reino…
Se acreditamos que o Reino de Deus é como que o Dinamismo do Amor de Deus a acontecer na nossa história, a revelar-se e realizar-se na Vida de Jesus, percebemos que a Oração é a Sabedoria deste Reino, o gosto pessoal, o sabor quotidiano deste dinamismo… o prazer de respirar, o sentimento de pertença, de envolvência…
Procuramos a Sabedoria do Reino, o Sabor que o seu Dinamismo imprime à nossa Vida…
Procuramos a novidade permanente do Deus do Reino… e “apanhar a onda” do Espírito, sintonizar com o Dinamismo do Reino a acontecer, de modo a “entrar” nele… é como perceber para que lado puxa o Vento do Espírito, para onde “corre a maré”… é como procurar a lucidez de maneira a percebermos também dentro de nós e nos nossos contextos, o impulso do Reino e as forças dos anti-Reinos…
E voltamos ao texto de Lucas:
Pai…
…santificado seja o Teu Nome…
…venha o Teu Reino…
…dá-nos o pão de cada dia…
…perdoa os nossos pecados, como também nós perdoamos os que nos ofendem…
…não nos deixes sucumbir na tentação…
Depois, Jesus acrescentou: “Suponhamos que alguém tem um amigo…”
Uma parábola típica, que usa o exagero e o contraste para falar de Deus e nos abrir à Confiança! Confiança filial…
“…o vosso Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lhe pedirem…” Este é o Dom de Deus, o maior e o único, porque Deus não tem uma “Dispensa de Dons”. Não tem para dar senão dar-Se! O Espírito Santo é o Amor de Deus feito Dom de Si mesmo…
É pelo Espírito que somos configurados com Jesus Re-Suscitado e nos tornamos cada vez mais capazes do melhor de nós mesmos, da realização da nossa Vocação primordial que é vivermos no Amor à imagem de Deus e descobrirmo-nos na condição de filhos Seus…
É pelo Espírito Santo que estamos cada vez mais capazes do Reino de Deus, que nos mergulha, num só movimento, na intimidade com Deus como Abba, na descoberta dos outros como Irmãos e na interpretação da realidade como História em Salvação.
É pela confiança que trilhamos os caminhos da Nova Aliança. O ritualismo, a recitação, a repetição desencantada de fórmulas, já o sabemos, não conduzem à Alegria de Deus nem à Procura do Reino. Sim, essas maneiras de entender a oração estão muito marcadas por um tipo próprio de “gnosticismo”, não tanto filosófico, mas piedoso e moral…
De qualquer modo… estas coisas tinham uma vantagem: tempos previstos, horas marcadas, números! 3 pai-nossos, 50 avé-marias, ao meio dia, nas primeiras sextas-feiras, ao primeiro sábado, em Maio, em Outubro, mês disto, mês daquilo… antes de dormir, ao levantar, sinal da cruz e beijinho, anjo da guarda… tantas coisas…
Tudo estava pré-determinado: quando, como, quantas vezes e onde. Ao procurarmos uma vivência da nossa Fé e da nossa oração como abertura de Confiança e descoberta encantada do Deus do Reino, não nos podemos esquecer que o Amor não se impõe… o que faz com que fique para trás muitas vezes! A verdade é que os Ritos, só por si, não levam a lado nenhum… mas os Ritmos que os Ritos nos imprimem são coisa boa. A nossa experiência pessoal de oração talvez tenha ficado despida demais dos números… Ou seja: quando, a que horas, onde…
Certamente encontraremos dentro de nós as possibilidades de ritmarmos a nossa relação de Intimidade com Deus e a procura da Sabedoria do Reino. Os Ritmos são importantes. Precisamos deles! Porque, aqui entre nós, reconhecemos que tudo isto é Importante mas, no meio de tantas coisas Urgentes, custa-nos às vezes ainda “ter pedalada” para aquilo que é Importante…
E depois acontece o que já sabemos… Uma das palavras mais importantes e presentes na nossa espiritualidade pessoal torna-se a palavra… “Amanhã”…